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29 de julho de 2019 por ciafundomundo

NUM CIRCO DOS HORRORES – A MÁGICA BELEZA DA CIA FUNDO MUNDO

NUM CIRCO DOS HORRORES – A MÁGICA BELEZA DA CIA FUNDO MUNDO
29 de julho de 2019 por ciafundomundo

Aguinaldo Moreira de Souza¹

Aconteceu no dia 30 de novembro de 2020, na Flick Escola de Circo, o espetáculo “Sui Generis”, da Cia Fundo Mundo, de Florianópolis/SC. Para além da força de resistência que o evento em si significa, há que se ressaltar a beleza da precariedade e a ética artística que emana deste momento: um espetáculo carregado de denúncias e simbologias da opressão num espaço pedagógico e lúdico faz jus à natureza do circo – a busca de comportamentos corporais sobre-humanos e de uma ética de sobrevivência.

A apresentação integra um projeto de intercâmbio do espetáculo Grazzi-Ellas, da Cia Teatro de Garagem, com outros três grupos de trabalho com abordagem ou concepção partindo da visibilidade da pessoa trans. Numa proposta visionária, Rafael Avancini, a partir do espetáculo protagonizado por Melissa Campus, pensou uma fecunda possibilidade de intercâmbio, na qual, financiados pelo Promic, três grupos que já abordam a experiência do corpo trans em espetáculos artísticos viriam a Londrina, oferecendo-nos um espetáculo e uma roda de conversa com a Atriz Melissa Campus.

Na vez, Londrina recebeu a Cia Fundo Mundo e seu espetáculo “Sui Generis’. A artesania e o improviso tomaram conta da rotina daquele dia, iniciada as 9 da manhã para preparo do espaço: monta e desmonta, corta e costura, dança e ri. Os anfitriões da Flick, nos receberam e acolheram o projeto – naquelas louváveis atitudes que só quem já se apresentou sobre palha de arroz entenderia. Perto das 19 horas, parecia que o espaço estava plenamente adaptado. Ledo engano, após a configuração física do espaço, as energias contrastantes advindas das pessoas que ali estavam iniciou uma nova exigência: o compartilhamento das diferenças extremadas.

Chegada a plateia e realizadas a cenas, instaura-se um vazio existencial: ninguém estava, ou estaria pronto para a experiência. Eram muitas camadas de singularidade, subjetividade e corporeidade. Nossos hábitos de recepção, nossos vícios de teatralidade e nossa pouca experiência no campo da empatia com a diferença nos colocam uma barreira quase intransponível para assuntos tão sui generis. Um olhar burguês e colonizado identificaria a precariedade e a aparente falta de técnica teatral (ou melhor: os vícios de correção, limpeza e tônus) como defeitos indesculpáveis. Uma capacidade mais reflexiva e aliada ao contexto performativo (facilmente substituíveis por empatia e bom senso) conseguiria aos poucos observar uma revolução – a vida surgindo nas falhas, nos recortes, nas cicatrizes e na ironia.

Inicialmente, a plateia teria que superar a estranha sensação de falta de pertencimento, pois a mesma estava muito longe dos horizontes apresentados. Para quem vive no senso comum, trabalhando, descansando e vendo TV, foi um impacto desestabilizante – a começar pelo mais evidente e assumidamente representado: o elenco era composto integralmente por pessoas trans (esse cyborg que ameaça a estabilidade da vida heteronormativa). Trocando em graúdos: todos os homens tinham vagina e todas as mulheres tinham pênis. A partir daí, somos obrigados a reconfigurar os contextos habituais, que colocam as pessoas trans na margilinadade e aceitá-las como protagonistas do discurso, da atuação e da dramaturgia. A artisticidade se instala na própria existência, quando as pessoas iniciam uma transição para modular sua aparência de modo a identificar-se consigo para, assim, encenar a sua presença no mundo como representação de sua essência, nada seria mais humano e performático que isso.

Um espetáculo de circo, desde suas origens, pauta-se por extraordinariedade, aberração, superpotência, bestialidade ou ingenuidade extrema. A hipérbole e o ilusionismo são os principais recursos do circo e revela-se em paradoxos corporais que trazem profundas imagens simbólicas: a bailarina do ar e a mulher barbada; o trapezista e o anão; o homem mais forte do mundo e o palhaço; o mágico e o motoqueiro do globo da morte. Cada artista, a seu modo, aprofunda seu estudo comprometendo seu corpo com a atividade. Um contorcionista e um fisioculturista, por exemplo, usam habilidades corporais natas e um treinamento intensivo para realizar seus números. Neste sentido chama atenção novamente o grupo, que nem nas modulações corporais voluntárias, um corpo trans-formado. Ao trabalhar suas performances nos aparelhos (como trapézio, tecido e lira) um artista tem alterações biotípicas em várias níveis, o que é bastante claro, por exemplo, em bailarinos e atletas, que nunca se livram das aculturações do corpo.

Neste ponto, há que se perceber a originalidade da questão e a singularidade que traz a Cia Fundo Mundo, pois em Sui Generis fica evidente uma dupla transformação: o corpo trans–artista circense, duplamente aberrante, extraordinário e revolucionário. Abre-se uma fenda na nossa percepção da realidade, para que possamos purgar nosso inferno e reaparecer num céu de inteligência, empatia e humanidade. Talvez muitos fiquem no caldeirão fervendo, mas a Cia Fundo Mundo, neste projeto, oferece um fio de Ariadne, para que as pessoas possam chegar à compreensão de que as aberrações maiores estavam sentadas na plateia.

¹Aguinaldo Moreira de Souza – Ator e performer, professor do Curso de Artes Cênicas da UEL, integrante do projeto Grazzi-Ellas TRANSitando.

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Juno Nedel

Juno Nedel é acróbata, palhaço, jornalista e historiador transmasculino. Nas artes circenses, dedica-se principalmente à lira, ao tecido acrobático, à pirotecnia, pirofagia e palhaçaria. Fez a oficina de introdução à Palhaçaria ministrada por Pepe Núñez em dezembro de 2019, na Casa do Palhaço (SC). Também participou do Grupo de Estudos Dramaturgia – Mulheres na Palhaçaria, ministrado por Karla e Ana Borges. Foi integrante da comissão organizadora do II Encuentro Latinoamericano de Circo LGBTIA+.

Instagram: @junonedel
Website: http://www.junonedel.com

Noam Scapin

Noam Scapin é uma pessoa transmasculina. Ttrabalha com acrobacia aérea, pirofagia, humor e palhaçaria. É integrante da Cia Fundo Mundo desde sua criação e faz parte do elenco do espetáculo Sui Generis. Acredita na força da arte como choque, risco e quebra de expectativa. Gosta de levar seu corpo a situações extremas e pasmar o público. Foca seu trabalho e pesquisa na representação das corporalidades gordas e transgêneras nas artes cênicas e no humor. Busca uma forma de fazer comicidade que não seja depreciativa, com o objetivo de reverter a maneira que o riso vem se dando nas representações dos corpos trans e gordos e redirecionar esse riso para o questionamento da norma cisgênera e magra. Vem estudando o movimento do corpo gordo e sua potencialidade em um dos espaços que lhe mais é negado, o das atividades físicas, como na acrobacia, na dança, nos esportes, etc.

Instagram: @noamscapin

Vulcanica Pokaropa

Travesti formada em Fotografia, Mestra em Teatro pela UDESC, sua pesquisa aborda a presença de pessoas Transexuais, Travestis e Não Bináries no Teatro e Performance, onde a série “Desaquenda” foi seu principal trabalho de Mestrado e está disponível no youtube pelo canal “Cucetas Produções”.
Pesquisa bambolê, contorção e comicidade. Performer, Poeta, Artista Plastica e Visual, Produtora Cultural, Curadora Circense, Criadora de conteúdo digital sobre Gênero e Sexualidade.

Contato: vulknik@gmail.com
Instagram: @vulknik
Youtube: https://www.youtube.com/c/CucetasProduções
Site: https://cucetaproducoes.wixsite.com/vulcanica/

Helen Maria

Helen Maria é circense, atuando principalmente como apresentadora, cômica e malabarista. Estudou circo na Casa do Palhaço e tem formações em palhaçaria com importantes nomes da área, como a Karla Conca e Antônia Vilarinho. Além de ser apresentadora no Sui Generis, espetáculo da Cia Fundo Mundo, já foi mestre de cerimônia de diversos espetáculos e varietês como a edição de dois anos do Drag Night Show, a Noite feminina da 7ª Convenção Paulista de SP, e a variete do Pré Encuentro Latinoamericano LGBT de circo. É estudante de teatro e dramaturgia pela casa da cultura em Joinville, mesma cidade aonde começou sua pesquisa com a performance e a escrita.

Instagram: @helenmariamaria

Lui Castanho

Lui Castanho é circense, ator e roteirista. No âmbito circense, trabalha principalmente com acrobacias aéreas, palhaçaria e pirotecnia. É formado na Escola de Palhaços do Circo da Dona Bilica (Florianópolis/SC, 2015), através do Prêmio Carequinha de Estímulo ao Circo. Lá, realizou residência artística durante o ano de 2016 e ministrou aulas regulares de acrobacias aéreas de 2016 a 2019. Além do trabalho com a Cia Fundo Mundo, faz parte da equipe do Encuentro Latinoamericano de Circo LGBTIA+, que teve sua primeira edição em 2019, em Montevideo/UY.

Instagram: @luicastanho
Website: http://www.luicastanho.com